Newsletter do Everaldo #15: Falta muito para outubro?
ou Por que estou ansioso para assistir "Springsteen: Deliver me from Nowhere"
Olá, leitores!
Primeiro, um disclaimer:
O texto de hoje não era para ser este, e sim, uma chamada para o lançamento da nova edição de Kiumba. No entanto, por motivos de força maior, o lançamento do livro teve que ser adiado, e eu ainda não tenho uma previsão exata de quando ele vai estar na Uiclap para vocês adquirirem. Não vai demorar tanto assim, mas é certo que isso não acontecerá mais em junho. Não se preocupem, o livro vai sair e logo logo eu volto aqui para falar mais sobre isso.
Agora, vamos ao tema da newsletter, decidida aos 45 do segundo tempo.
Bruce Springsteen é um dos meu heróis
Sim, pode soar estranho para muita gente, mas o cantor Bruce “The Boss” Springsteen, natural de Nova Jersey, representação quase mítica da classe trabalhadora norte-americana na música, é um dos meus heróis. É quase inexplicável, até mesmo para mim. Mas vou tentar resumir.
Durante minha adolescência e até uns vinte e quatro anos de idade, Bruce Springsteen nunca passou de uma figura cantando com muita força no videoclipe de “We Are The World” ou vagando pelas ruas da Filadélfia em “Streets of Philadelphia”, melancólico pra caralho. Um dia, então, já casado, eu vi pela primeira vez o videoclipe de “Dancing in the Dark”. Ali, tudo mudou.
Sim, hoje aquela dança bizarra, aquela vibe flashback e a puxada nada-por-acaso de Courtney Cox para o palco, tudo pode ser meio meme, meio piada (a dança em si já foi parodiada infinitamente, de SNL a Um maluco no pedaço, mas foi aquela canção sobre estar inconformado com a própria vida que me fez prestar mais atenção no Boss. Aquele videoclipe dirigido por Brian de Palma tem uma atmosfera, uma coisa magnética que eu não sabia explicar.
Messages keeps gettin' clearer
Radio's on and I'm movin' 'round my place
I check my look in the mirror
Wanna change my clothes, my hair, my face
Man, I ain't gettin' nowhere
I'm just livin' in a dump like this
There's somethin' happenin' somewhere
Baby, I just know that there is
[…]
You sit around gettin' older
There's a joke here somewhere and it's on me
I'll shake this world off my shoulders
Come on, baby, the laugh's on me
Porra, olha essa letra…
Assiste aí e sente o drama.
Bom, dali para ouvir o Born in the USA foi um pulo, e de repente eu fui capturado pela sonoridade da E Street Band, pela potência das letras de Bruce, que iam da crítica velada ao governo pelo tratamento dado aos veteranos do Vietnã à dor de um amor proibido, a rotina árdua dos trabalhadores, a desconexão de uma amizade e a nostalgia da infância em sua cidade natal. Foi um caminho sem volta.
Gosto de pensar que chegar à música de Bruce Springsteen foi o marco inicial da minha vida adulta. “Tá, a partir daqui, você é um homem. Você está casado e ouve Bruce Springsteen. Só falta um filho.”
Enquanto eu conhecia a discografia do artista — que é fenomenal e que eu pretendo comentar em alguma edição da newsletter, qualquer dia —, assistia a cada videoclipe disponível no YouTube — o de “Brilliant Disguise” é maravilhoso, gravado em tomada única, apenas Bruce sentado em uma cozinha e o violão, P&B, a câmera se aproximando lentamente dele até focar apenas em seu rosto — e lia a autobiografia, Born to Run, lançada aqui no Brasil pela editora LeYa em 2016 — determinante para que Bruce se tornasse um dos meus heróis —, eu ia escolhendo meus álbuns favoritos.
De vez em quando eles mudam de posição. Por muito tempo foi impossível não dizer que era o Born in the USA, mas depois eu me apaixonei por Tunnel of Love, que traz um Bruce mais maduro, o mais adulto possível, falando sobre desilusões amorosas, compromissos e como ser um homem casado não era exatamente o que ele esperava. Depois — e esse é meu favorito no momento — viciei em Darkness of the Edge of Town, um disco mais elétrico e cru, mas intensamente emocional.
No entanto, um álbum sempre esteve pairando no meio deles, um disco totalmente acústico, obscuro e íntimo. Estou falando de Nebraska.
Corta para 2025
Em 18 de junho de 2025, foi divulgado o trailer do filme Springsteen: Deliver me from Nowhere (que aqui no Brasil se chamará Springsteen: Salve-me do Desconhecido), cinebiografia — elas estão na moda agora, não é mesmo? — de Bruce Springsteen, com Jeremy Allen White, de The Bear, interpretando um jovem Bruce no início da década de 1980.
Não sou muito ligado no trabalho do diretor, Scott Cooper — dele, só assisti a O pálido olho azul, que achei OK —, mas o elenco parece muito bom — além de White, que é um narigudo gostoso muito talentoso, teremos Jeremy Strong no papel de John Landau, amigão e empresário de Bruce, além de Stephen Graham como o pai do cantor, Douglas Springsteen. Porém, o que me pegou mesmo é que o filme é baseado no livro Deliver Me from Nowhere: The Making of Bruce Springsteen's Nebraska, de Warren Zanes.
Eu não li a obra, mas o material base revela uma parada: na cinebiografia, vamos acompanhar a vida do cantor durante a produção de Nebraska, um momento divisor de águas na carreira de Springsteen — e também um dos mais delicados de sua vida.
Antes de continuar, dá uma assistida no trailer:
A produção de Nebraska começou em 1981, após o fim da gigantesca turnê do disco duplo The River, maior sucesso de Bruce e da E Street Band até então. Naquela ocasião, Bruce ainda não era um ícone mundial, mas construía uma reputação cada vez maior nos Estados Unidos. A turnê, longa e desgastante, que passou pela Europa, trouxe sentimentos conflitantes para o cantor: ele se sentia feliz pelo sucesso, mas distante de sua casa, de sua família e das pessoas que, de certa maneira, eram o tema das suas músicas.
Bruce sempre escreveu sobre gente comum. Ele é um contador de histórias. Em suas letras, o protagonista é o homem comum, o trabalhador, o jovem sonhador que luta todo dia em busca de uma vida melhor, o mesmo cara que no fim de semana só quer sair para beber e se divertir, esquecer um pouco da rotina, e que sempre precisa lidar com as crises existenciais de uma realidade que teima em não mudar.
Quando a turnê do disco acabou, Bruce fez uma coisa que sempre fazia: se isolou de tudo e de todos. Ele sofria de depressão, mas ainda não tinha entendido isso. Enfiado em seu rancho na zona rural de Colts Neck, Nova Jersey, enquanto baixava a adrenalina da turnê e trabalhava em músicas novas, ele finalizava leituras e assistia filmes. Sua leitura de autores como Joe Klein, Howard Zinn, Allan Nevins e Henry Steele Commager o ajudaram a, como diz em sua autobiografia, se “ver como participante da época em que vivia”. Bruce vivia uma espécie de crise de nacionalidade, ele queria entender o que era “ser americano”, e buscava uma resposta abrangente que ele sabia que era ambiciosa demais.
Nessa época, ele viu filmes como As Vinhas da Ira (1940), de John Ford, e Badlands (1973), de Terrence Malick, também leu romances noir de James M. Cain e os contos de Flannery O’Connor; e mergulhou no som folk e country de Woody Guthrie, Bob Dylan e Hank Williams.
Acima de tudo, Bruce refletiu sobre sua própria vida, especialmente sua infância e juventude.
Quando as músicas começaram a sair, ele decidiu gravar demos simples, só voz, violão e, ocasionalmente, uma gaita ou um bandolim. Chamou seu amigo e técnico de som Mike Batlan e, com um gravador simples, um Tascam 144 de 4 canais, gravou dezessete músicas. A ideia original era levar essa fita demo para o estúdio, apenas como base para a E Street Band, para que trabalhassem nos arranjos elétricos.
Acontece que a maior parte das tentativas de “eletrizar” as canções daquelas fitas falharam miseravelmente. Algumas das músicas gravadas naquele porão — como “Born in the USA”, “Downbound Train” e “Working on the Highway” — até funcionaram com o restante da banda. No entanto, não eram aquelas músicas que Bruce queria trabalhar no momento. Elas eram a minoria dentro de um repertório minimalista, mas potente, que perdia a energia original quando a banda toda tocava junto.
Inquieto e insatisfeito, sem saber o que fazer com aquele material cru, que trazia canções maravilhosas, só restou uma solução para Bruce: lançá-las da forma como estavam. Em 30 de setembro de 1982, saía Nebraska, o primeiro disco solo de Bruce Springsteen, gravado no porão de uma casa, em um gravador de fita simples. E foi um sucesso estrondoso.
O álbum se tornou o terceiro disco mais vendido daquele ano nos Estados Unidos, mesmo que Bruce não tenha feito uma turnê para divulgar o disco. A estética do som, minimalista, com influências de heartland rock, lo-fi e country, unida às letras extremamente sombrias, pessoais e emotivas, transformou o disco em um dos trabalhos mais importantes do cantor. Nele, o cantor atingiu uma nova maturidade. Faixas como a sombria “Nebraska”, narrada do ponto de vista do assassino Charles Starkweather; “Atlantic City”, com sua gaita e os vocais sobrepostos, falando sobre as guerras da máfia na cidade; “Mansion on the Hill”, que traz memórias da infância do cantor; e, especialmente, “My Father’s House”, melancólica, sobre um homem que busca se reconciliar com o pai, são belas, intimistas e profundas, pontos fora da curva na carreira de Bruce, que a partir dali veria seu estilo se ampliar para além do rock and roll e das influências da soul music.
Hoje, Nebraska é considerado um clássico, influente desde o country ao indie rock, além de representar um marco na gravação caseira, visto que foi um dos primeiros discos de um grande artista a ser gravado de maneira simples, fora de um estúdio, e comercializado com base nessas características. Foi tão importante na carreira de Bruce que ele faria mais dois discos na mesma pegada “voz e violão”, os ótimos The Ghost of Tom Joad (1995) e Devils & Dust (2005).
No entanto, e apesar do ponto de virada comercial para Bruce — e sua gradual transformação nesse ícone, nesse mito da classe trabalhadora norte-americana e mundial, por que não —, os meses antes, durante e depois de Nebraska marcaram um duelo interno no cantor, agravado pela depressão que ele não admitia.
Bruce estava no ponto da vida que muitos sonham estar: bem-sucedido na carreira musical, seu sonho de infância, respeitado no meio e confortável financeiramente, ainda que não milionário. Apesar disso, as coisas não pareciam fazer sentido em sua cabeça. O desconforto envolvia muita coisa — inclusive ter consciência de que era o sortudo da família, o cara que “tinha dado certo” e que, por isso, não deveria estar infeliz. “Não conhecia ninguém que estivesse ganhando mais do que precisava para viver, por isso o dinheiro que eu ganhava me deixava com uma sensação desconfortável e até de alguma vergonha por eu ser diferente”, escreve em sua autobiografia, mostrando como aquela coisa do “dinheiro não traz felicidade” não deixa de ter um fundo de verdade.
O cantor vivia mais que uma crise de nacionalidade, mas sim uma de crise de identidade. Entender a si mesmo parecia um problema, especialmente quando se dava conta de que não se sentia bem na própria pele, acreditando que não seria capaz de formar uma família ou de ter uma vida simples como seus pais tiveram, porque não se ajustaria àquilo. Ele era o homem da estrada, o ídolo que não poderia criar laços.
Havia algumas coisas em seu passado — certa desconexão com o próprio pai, por exemplo, que também tinha depressão — que sempre martelavam sua cabeça. A solidão na composição e na gravação das canções de Nebraska tinha um duplo efeito: mostravam que era um artista independente e completo, mas também que era alguém que evitava conexões, que evitava compartilhar, que evitava ceder. E isso, em algum momento, cobrou seu preço.
“Dizer ‘não’ fazia parte do DNA do lado irlandês da minha família. Não aos médicos, às cidades, às pessoas estranhas, às viagens… ‘Você vai ver… o mundo lá fora é um monstro, esperando para nos comer vivos.’ Dizer ‘sim” é que não é assim tão fácil para nós. Mas eu também era extremamente protetor da minha música e do mundo que tinha começado a criar. Eu valorizava-o seriamente, quase até o extremo, pondo-o acima da maior parte das coisas… talvez mesmo acima de todo o resto.”
Em certo momento de sua vida, ainda na década de 1980, Bruce Springsteen buscou ajuda para tratar sua depressão, o que ele confessa nunca ter resolvido completamente, o que é compreensível. Como o filme de Cooper se passará nessa fase de sua vida, é de se esperar momentos dramáticos e que exigirão nuances na atuação de Jeremy Allen White. O próprio Bruce comentou em uma entrevista recente que evitou comparecer às filmagens do longa nas cenas que ele sabia que abordariam seu problema com a depressão.
Então, é de se esperar um filme, no mínimo, emocionante. A carreira de Bruce é longa e fabulosa, mas focar em apenas uma fase de sua vida parece ser uma escolha estética excelente, em vez de tentar resumir uma vida intensa como essa em um filme de duas horas.
Nebraska, de certa maneira, é a expressão dessa melancolia, dessa tristeza quase inexplicável que o cantor sentia, o tipo de sentimento que nos leva a recorrer ao passado, às boas memórias, àquilo que gera segurança, que são um porto seguro, mas que não nos preparam para o futuro, esse desconhecido do qual não podemos nos salvar.
“Eu queria que a música fosse sentida como um sonho acordado e que se movesse poeticamente. Queria que o sangue daquelas canções fosse sentido como destinado e fatídico”.
Bruce, cara… você conseguiu.
Se você é fã do Bruce Springsteen ou quer assistir algo relacionado a ele, vou deixar aqui algumas dicas legais:
A Música da Minha Vida
Dir.: Gurinder Chadha, 2019, 1h54min, disponível para alugar no Amazon Prime Video
Neste longa metragem conhecemos Javed Khan, um adolescente filho de imigrantes paquistaneses vivendo durante a década de 1980 na Inglaterra. São os anos Tatcher, a classe trabalhadora está em crise, seu pai é demitido e Javed ainda sofre racismo e xenofobia. Amante de rock — que ele ouve a contragosto do pai — e aspirante a poeta, ele é apresentado por um colega da escola às músicas de Bruce Springsteen, passando a se enxergar nas letras do cantor. O filme é baseado na vida do jornalista Sarfraz Manzoor e traz momentos musicais muito bonitos, embalados pela música de Springsteen, além de representar com muita fidelidade as dificuldades daquele período. Filme muito legal.
Diário de Estrada: Bruce Springsteen and The E Street Band
Dir.: Thom Zimny, 2024, 1h39min, disponível no Disney+
Neste documentário, acompanhamos os bastidores das turnês mais recentes do cantor e sua banda. Além de ver como os artistas preparam suas performances para turnês tão longas e intensas — não podemos esquecer que Bruce e boa parte da banda já são SEPTUAGENÁRIOS —, também temos depoimentos do cantor, imagens de arquivo e histórias legais sobre uma carreira, como eu já disse antes, longa e fabulosa. Funciona melhor para quem já é fã do cantor.
Dicas bônus: Filadélfia
Dir.: Jonathan Demme, 1993, 2h06min, disponível no MAX
Neste maravilhoso filme, conhecemos Andrew Beckett, interpretado brilhantemente por Tom Hanks. Ele é advogado e trabalha em um grande escritório de advocacia, mas esconde tanto sua homossexualidade quanto o fato de que é portador do vírus HIV. No entanto, quando o vírus começa a debilitá-lo, a empresa percebe que ele está doente e o demite. Para processar a companhia, ele recorre ao advogado de pequenas causas Joe Miller, interpretado pelo não menos brilhante Denzel Washington, ainda que Miller também seja um homofóbico. Com um ótimo elenco, interpretações incríveis e direção de Jonathan Demme, que estava voando nos anos 1990 — basta lembrar que dois anos antes ele havia dirigido O silêncio dos inocentes e, em 1995, ele adaptaria o romance Amada, de Toni Morrison —, o filme está na lista porque sua música tema, “Streets of Philadelphia”, foi composta e gravada por Bruce Springsteen, rendendo nada menos que um Oscar de Melhor Canção Original para o cantor em 1994. Filmaço!
É isso, pessoal. Um abraço e nos falamos em breve!